Serra Lagoa foi esquecida pelo mundo. E como não há lembranças convém dizer que esta fabulosa história foi contada por um de seus moradores em 1989, na casa de tia Veridiana. Era uma tarde de outono. Todos sentados na roda do chimarrão... E ainda sentia-se o cheiro das colônias gaúchas.
Tio Astolfo Severo Oliveira Bastilho era um nobre cartorário. Responsável pelas documentações obrigatórias dos poucos moradores da minúscula província... Ainda vivo e muito piadista nesse ano de 89. Quando a tarde foi tomada, pelas recordações da historia da casa dos mortos.
A casa – que já teve sua cor escura, com bordas violáceas – foi assombrada anos antes. Para ser mais preciso na década de 70. Quando nela nascera o único filho de Creusa Vinta. Única herdeira da casa. Solteirona na casa dos 40, por sorte dela e azar da criança, ele nasceu.
Cresceu sendo chamado de Feio. Apelido dado por tia Neca, no dia em que ela teve os olhos arregalados pelo susto. Ao ver a imagem tenebrosa no espelho da criaturinha que segurava nos braços. Tão feio era o reflexo que não lhe outro adjetivo para descrever. Sem hesitar, engasgada pela baba que escorria de sua voz fanha, atirou o pequeno no berço escuro de madeira. Arrancou os bob´s que prendiam os cachos por encaracolar e cada fio se arrepiou no susto da imagem que viu refletida.
Nesse momento do enredo chegou prima Antha. Que vinha ser sobrinha neta da falecida Neca e que tinha muitas perícias a relatar deixadas pela tia avó. Que, segundo ela, fora a primeira assombrada pela figura da criança azarada.
O mais intrigante de todos os testemunhos é que nenhuma das cinco tias, apoiadas em suas cadeiras estofadas, construídas de ipê, de cores vinho e com estofado de um verde escuro, com desenhos florais, nenhuma delas nem um outro conseguia descrever as feições da pobre criança.
Creuza Vinta foi herdeira de tio Menelau. Primo irmão de tio Astolfo e sobrinho direto das cinco tias Marias. Menelau morreu aos 80 anos. Cansado das rodas de tereré e das tardes sentado em frente a casa rosa observando o vazio da praça. Mas foi sua esposa, tia Zumira quem escolheu o nome da filha mais velha. Em homenagem a linhagem de tias e tias avós freiras. Que seguia uma ordem de um nome composto organizado pelo nome numérico. Todas elas já nasciam com esse rotulo. Para que seu destino se cumprisse num convento. Mas assim ocorreu até Ofélia Dozina, pois quando sua irmã dera o nome para filha ela não imaginou que o tabelião tio Abílio, pai de Astolfo, embriagado pelas comemorações do casório errara a certidão, invertendo os nomes... E Zenilda Treza, acabou se chamando Trezenilda. E aos 13 anos já declarou que jamais seguiria a tradição. Fugiu com um caminhoneiro carregador de ipês. Que vinha do mundo e iria para o Sul.
A partir de então os nomes foram seguindo a mesma ordem, mas nunca mais se tiveram freiras no vilarejo.
Assunta Dezenovina quase voltou a caminhar pela tradição. Já tinha decidido por ser uma devota religiosa. Não fosse ter se apaixonado por um jovem mulato, filho do pastor mudando o rumo e até de religião.
Creuza Vinta chorou muitas noites desconsolada pelo cabelo ruim. A pele ilhada pelas espinhas e a cintura que nunca se afinara. Suas pernas tortas, coxas finas e enormes panturrilhas foram conseqüência da meningite quando criança. Ela berra feito cabra e pergunta a mãe desalmada porque a peste não a matara ao invés de enfeiá-la. E a pobre mãe dizia que ela já nascera disforme, desprovida de qualquer artifício de beleza feminina. A doença apenas entortou suas pernas e a fez estrábica assim como o tio Bobo.
Tio Bobo foi atingido por um raio num dia de chuvarada e ficara com os olhos virados e a cabeça desregulada. Então desde os treze anos andava pela rua a dizer coisas sem sentido. Desaparecia apenas em dias de temporal. Quando se embrenhava pela fazenda esperando um outro raio para desfazer a desgraça. Mas tia Perola Sabiá, que vinha a ser esposa de Abílio, sempre alertou que um raio não cai duas vezes no mesmo lugar, que dirá na mesma cabeça.
Creuza passou os 39 anos chorando desconsolada até o dia em que um homem mudou sua vida.
Foi Getulio Gato. Um bicheiro viajante que se hospedou na pensão de Dona Amália, minha mãe. A pensão que vizinhava com a casa escura. Ele encantou Creuza com seus modos elegantes. Deu a ela um botão de rosa. Poetizou o momento comparando a formosura dela com a rosa. Ela enrubescera.
Não dormia mais. Apenas continuava comendo. Porém não engordava um quilo. Polemica que gerava horas de discussão entre as tias.
O casal de namorados passeava pela praça todos entardeceres. Jantavam juntos e ouviam as melodias tocadas na arpa por Eurico, primo de meu pai.
Os meses iam. A casa escura se encheu de flores. O desejo aflorava dia após dia na carne dos amantes.
Então Creuza engravidou. Gato estava pronto para o casório quando fugiu.
Sumiu ao saber que por ali andava um tal Chico Leitoa. Bandido de fronteira. Vinha para um acerto de contas, diziam.
Foi-se deixando uma carta perfumada para Creuza. Afirmando no papel que voltaria dentro de dois meses. Passaram-se vinte anos até a morte de Creuza e ela esperou cada dia sem qualquer noticia do paradeiro do pai de seu filho.
Fernando Feitor foi o nome escolhido por ela para o bebê. O tal que sempre ao ser colocado diante do espelho tinha a face e todo o corpo desfigurado, causando pânico aos outros.
E isso até seus vinte anos quando morre a mãe. Ele é o único agora a viver isolado na casa escura. Agora chamada por todos de a casa dos mortos, devido aos barulhos que se ouve. Ninguém jamais consegue entender a causa dos barulhos já que na casa vive apenas o jovem rapaz. Que tem o rosto impecavelmente branco, olhos da cor do céu, pele aveludada, mas que nunca se olha no espelho.
esperando...
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