sexta-feira, 2 de abril de 2010

Onde o caracol habita

















Ela mora num prédio velho.


As escadas são caracol.


Lá embaixo, ela pensa - ainda menina - é onde os mortos escutam.






Mona já tem vinte anos e olha aquele homem com seus olhos dos doze.






Agora, ela ouve gritos. É a mulher dele. Lisa tem cabelos pintados de loiro.


Escuta os tiros. Ele a acertou. Bebeu a tarde toda, deu nisso, pensa a Dona Zilá, vizinha do alto. Onde o caracol olha. E o síndico, Seu Moreira, chamou a polícia. Ele vive no térreo. Onde o bicho esconde o rabo.






Saí do ap. Olhei e vi ele algemado. Olhou para mim, como uma fera, prestes a ser engaiolada.






A loira está com os olhos inchados, enegrecidos. A tinta escorre de dentro do ap.


Ela chora, terminando uma melodia lamuriosa. Lamentando tudo, mas lamentando ter que lamentar. Ela o ama, dá pra ver nos seus olhos.






Seu corpo é colocado numa maca, fecham o zíper. Ela vai para o necrotério.


Coitada!






Morreu loira! Devia querer isso. Nunca deixava o cabelo escurecer direito e já comprava wellaton, pintava fio por fio.






O 38 estava na mão do policial.






Lembrei da fera; nesse momento...






8 anos atrás. A campainha tocou. Achei que fosse a nova moradora, Dona Zilá. Mas era o motoboy. Nunca soube direito o nome dele. Todos o chamavam assim. Acho que era Guilherme, não sei direito. Ele estava na minha frente, pediu um pouco de erva para tomar tereré. Fui à cozinha buscar. Ele nem trouxe nada para levar. Que folgado, pensei. Quando voltei, ele tinha fechado a porta. Vinha pro meu lado. Encostou o corpo no meu e passou a mão na minha bunda; senti um arrepio. Ele começou a se esfregar em mim. De repente abriu o zíper. Tirou o pinto pra fora, duro. Eu nunca tinha visto um pinto de homem adulto. Em volta muitos pelos, negros. Eu corri pro quarto. Ele saltou.


Os pêlos cresceram rapidamente. Seu corpo aumentou de tamanho. Seus músculos tomaram forma monstruosa. Parecia o Hulk, só não era verde. Uma fera. Saltava alto e soltou um urro. Parecia um lobisomem. Mas era meu vizinho. O caracol se contorce. Mas paredes não têm vida. Elas testemunharam mudas. Rasguei as cortinas. Os panos cobrem a dor. Ele me achou. Me pegou nos braços e me jogou na cama com muita força. Ai de mim!


Perdi o rumo. Ele me abriu. Feito uma rosa, aberta pelos espinhos. Tirou minhas pétalas. Animal feroz! Seus pelos entraram por mim. Suas veias corriam no meu sangue. Meu sangue escorreu sobre o lençol.


Ela sorria na duvida; a olhei na certeza de que aquilo já era a minha história. Seu cabelo liso e escorrido lembrava a cor do cabelo da mulher dele; mas sua duvida era a minha. Quem a pintou?


Achei que podia ser como ela, uma tela na parede de um quarto qualquer. Mas meu corpo se movia. Ele urrava e me surrava toda. Suando sobre minha pele. Derramando o cheiro mofado daqueles pêlos todos. Ai de mim!






Agora a fera está algemada. Mas ele poderia fugir, tem muita força. Eu sei!


Será que eu o amei?


Fecham o zíper. A levam para o necrotério. O cabelo amarelo, como ela sempre gostou. Entro no quarto, olho o quadro. Agora eu sei que a Monalisa foi pintada por Leonardo Da Vinci. É o que me disseram.Abro a geladeira, ligo o som, faço um sanduíche, esquento no microondas. Procuro a coca-cola.

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